Fausto de Martini é brasileiro, Neville Page e Seth Hall são americanos e todos moram e trabalham nos Estados Unidos. No entanto, muito mais importante que a cor de seus passaportes e a atual longitude e latitude de suas caixas postais, é saber que essas três pessoas levam na mala um currículo excepcional no disputado universo da computação gráfica em 3D, seja ela criada para o cinema ou para a lucrativa indústria de games.
Martini, como diretor do Departamento Cinematic na Blizzard Entertainment, produtora de games, é nome importante por trás do design de games do porte de
World of Warcraft,
Starcraft 2 e
Diablo 3. Neville Page é o cara que cria a chamada Concept Art (arte conceitual) para personagens de filmes que você, certamente, já ao menos ouviu falar:
Minority Report,
X-Men 2 e
3,
Avatar,
Tron: O Legado e, em breve nos cinemas,
Lanterna Verde. Já Seth Hall trabalha com efeitos especiais de fenômenos naturais e coisas quase inatingíveis de se criar no computador como: vento, fogo e movimento de água. No currículo, trabalhou em games como Dead Space 2,
Dante's Inferno e séries como
CSI: Miami e
Buffy: A Caça-Vampiros.
Em entrevista exclusiva ao Terra, esses três artistas que estão no Brasil a convite do evento The Union, uma parceria entre duas escolas de CG (a americana Gnomon e a brasileira Saga), falam sobre o processo e os bastidores de seus trabalhos, incluindo aí informações sobre o que aconteceu por trás das câmeras em
Avatar, de James Cameron. No The Union, realizado em São Paulo, eles palestram nesta terça-feira (15) explicando o que existe por trás da realidade que eles criam do papel, jogam no computador e nos revelam em telas de cinema, de TV ou dos monitores que nos fazem companhia.
Existe algo hoje que não possa ser feito pela computação gráfica 3D?
Neville Page - Acho que as ferramentas tecnológicas chegaram a um ponto em que você não precisa mais se preocupar com questões do tipo "será que isso pode ser feito de modo que seja visualmente preciso?". Porque tudo pode ser feito, a um ponto de ficar cada vez mais difícil ser criativo com uma boa e crua ideia. Esse é o trabalho difícil.
Fausto de Martini - A tecnologia hoje em dia exige que você tenha novas ideias e esse é o grande desafio.
Há uma chance de que o avanço da tecnologia venha a machucar a criatividade do artista?
Seth Hall - Não para um artista de efeitos especiais. Para mim, quanto melhor a ferramenta, melhor meu trabalho. Faço efeito com partículas e fluidos para filmes, TV e games. Trabalho com fenômenos naturais, efeitos de mágica e feitiços.Tipicamente, minhas responsabilidades seriam pegar um conceito que eles (os estúdios) queiram criar. Normalmente recebo referências bem específicas do que eles querem.
Neville Page - Um artista que trabalha com Concept Art deve sim ter cuidado com a tecnologia porque ela pode, de fato, te desacelerar. É por isso que o papel é um tanto libertador. Não preciso preparar tanto em termos de polígonos, o fluxo de trabalho com o lápis corre mais solto.
Fausto de Martini - Pra mim, não acredito que a tecnologia possa prejudicar minha criatividade. Quanto mais podemos fazer, mais nos forçamos a ir além. E é sempre excitante fazer mais. Acho que Avatar é realmente um bom exemplo de quanto se pode fazer com tecnologia. Creio que não importa o quão rápido são os computadores, sempre vamos exigir mais. Nunca será o suficiente.
O trabalho com CG em grandes produções exige muitas vezes que os artistas tenham tarefas bastante específicas. Neville, por exemplo, criou o conceito dos capacetes de Tron: O Legado, e às vezes sabemos de pessoas que trabalham, por exemplo, apenas com a luva da mão direita de um personagem. Ter tarefas específicas assim ajuda ou atrapalha?
Neville Page - Acho que pode ser bem perigoso quando a especificação de um objeto é dada a um artista que desconhece o todo daquele objeto. Mas não acho que isso aconteça assim com tanta frequência. A coisa boa de Tron: O Legado foi que me foi dada a tarefa de criar um conceito para o figurino completo até chegar ao capacete. E não criei apenas o figurino de um personagem, mas de todos eles. Isso aconteceu principalmente porque é preciso ter uma coesão nas escolhas estéticas da história. Aí quando o time estabelece esse visual geral, se pode sim separar tarefas específicas para as pessoas. Com Avatar, depois que se estabeleceu a aparência de todas as criaturas, você podia ter uma pessoa trabalhando apenas com um dedo para fazer daquele dedo algo perfeito. Mas para chegar lá, essa pessoa já conhecia a ideia geral, sabia das regras. Aliás, essa é uma das coisas mais importante no trabalho de uma equipe de designers em 3D, você precisa estabelecer as regras daquele universo antes de tudo.
Vocês três trabalham com diferentes mídias. É importante conhecer um pouco do que o outro faz para entender todo o processo de criação?
Fausto de Martini - Especialmente para nós, em Cinematic, que buscamos sempre chegar ao mais próximo dos filmes, afinal, estamos criando um filme para um jogo, é essencial. Publicidade pra mim é uma grande fonte de inspiração. Você precisa, na verdade, olhar pra tudo que te cerca. Adoro, por exemplo, bonecos japoneses que têm um trabalho mecânico. Existe bom design vindo de todos os lugares e, para ser um bom artista, é preciso estar apto a achar inspiração no trabalho dos outros.
Neville Page - Para Avatar, procurei olhar especificamente para carros. Essa foi a motivação por trás da criação da linguagem que parecesse aerodinâmica e hidrodinâmica...
Fausto de Martini - Dos banshees (as gigantes aves do filme)?
Neville Page - Sim, dos banshees. Foi bem legal. A ironia é que o design automotivo é geralmente baseado em designs orgânicos, como cavalos, peixes, felinos. De forma que era uma maneira de fazer a criatura de forma que ela parecesse orgânica, mas cujas linhas dos ossos e detalhes eram intencionalmente feitas para parecer mais automotivas que uma criatura completamente orgânica.
Em Avatar, o universo de Pandora foi criado do nada, não havia aquele planeta, aquela fauna e flora. Qual era a principal ideia que James Cameron queria emular quando conversou com vocês sobre esse universo?
Neville Page - Jim foi bem específico quando foi nos dirigir artisticamente e a primeira coisa que ele disse foi: "Garantam que todas as suas metáforas sejam claras". Significando: se no roteiro se lê "desenhe um cavalo" ou "desenhe um lobo", sabíamos que aquele personagem tinha semelhanças com um cavalo ou um lobo. No caso dos banshees, havia uma descrição de que se tratava de uma ave, que voava, mas que poderia ser também uma barracuda e aí ele começou a nos dar referências que o animavam. E aí começamos a procurar maneiras de manipular algo próximo de uma barracuda em uma criatura final. Ele insistia que todas essas criaturas fossem organicamente reais. No caso dos banshees, por exemplo, eles não podiam ser apenas aves que voavam. A ideia é que, se eles realmente existissem, tivessem uma estrutura de corpo que de fato voasse. Procuramos buscar o centro de gravidade do animal, como os Na'vi se sentariam sobre eles. Tivemos que aumentar as asas, mudar o comprimento do rabo. Pra resumir como era o funcionamento do filme, tivemos que esculpir um banshee em tamanho real para que pudéssemos montar nós próprios nele e fazer um, digamos, test-fly (algo como um test-drive na ave).
Você fez esse test-fly?
Fui o primeiro! Porque era eu quem estava desenhando ele. Quando sentei pela primeira vez, vi que meu pé não se encaixava em lugar nenhum, e aí tive que voltar pro modelo digital da criatura e ajustá-la, tirar algumas coisas daqui e adicionar outras ali. E aí quando finalmente conseguimos fazer com que aquele design funcionasse, Jim subiu na ave. Somente depois que ele ficava satisfeito com o resultado era o momento dos atores testarem, vestindo todos aquelas roupas marcadas por pontos. Foi trabalho duro!
Seth Hall - Mas fez com que tudo parecesse mais real...
Neville Page - Definitivamente fez. Mas é preciso dinheiro para fazer tudo isso. Muito mais dinheiro do que uma produção normal exigiria. E Jim sabe disso.
Falar em "real" na indústria do entretenimento nos faz lembrar que muito da a história hoje em filmes e games é tentar reproduzir uma realidade que nos pareça muito mais "real" do que ela de fato é. Existe alguma preocupação filosófica por trás do trabalho que vocês fazem?
Fausto de Martini - Acho que os seres humanos são apaixonados por coisas que soem naturais a eles. Talvez tentar criar uma realidade seja apenas essa sensação de que podemos criar algo que nos é natural, porque existem ali aspectos baseados na realidade.
Não parece que estamos voltando ao tempo da Grécia e Roma Antiga ou do Renascimento, em que a arte buscava se aproximar o máximo possível dessa natureza real?
Fausto de Martini - Não sei, talvez nos filmes seja assim, porque eles têm essa fundação fincada na realidade. Mas em games e alguns outros trabalhos em CG se têm muito mais liberdade. Existem muitos estilos hoje em dia.
Neville Page - A expectativa sobre um filme é que ele tenha que ser fotorealístico. À exceção das animações, claro. E o interessante é que as coisas mais reais que a gente conhece são os fenômenos naturais, porque fogo e movimento de água, por exemplo, são muito complicados de reproduzir. Ele (apontando para Seth Hall) tem o trabalho mais difícil. Do mundo!
Seth Hall - (Risos) Enfim, é muito fácil identificar quando um movimento tão natural como o movimento da água no oceano não é real. Com filmes, acho que estamos chegando a um ponto que, daqui a pouco, poderemos enganar as pessoas com o olhar mais clínico a não identificar o uso de efeitos. Na minha família, boa parte das pessoas não faz ideia de que uso efeitos em algumas cenas que para eles parecem naturais. Exemplo: em Clube da Luta, muitas das coisas naquele filme eram computação gráfica sutil, mas boa parte das pessoas não se deu conta de que havia CG ali.
Te perturba quando você vai assistir a um filme e percebe que algum efeito não saiu certo?
Seth Hall - Não me perturba. Quando vou assistir a um filme do tipo arrasa-quarteirão, definitivamente vou para ver como os efeitos foram usados. A cada novo filme que sai parece que uma coisa nova está sendo feita. Vou pra ver no que eles melhoraram. É difícil ver um filme que não me pareça real em seus efeitos, como é o caso, por exemplo, de Distrito 9, que é um filme fantástico, mas com o qual eu não conseguia imaginar sendo realístico, ainda que fosse uma história fantástica.
Fausto de Martini - Engraçado que, depois de ver Avatar, minha filha, com nove anos de idade, perguntou se os Na¿vi realmente existiam. Enganou ela.
Seth Hall - Engana muita gente.
Neville Page - Ou engana aqueles que desejam ser enganados. Há coisa interessante sobre percepção. Quando você é uma criança e acha que há algo estranho dentro do guarda-roupa, você não apenas imagina essa coisa, como tem uma reação física a esse medo. Seu corpo começa a gerar uma tensão e há uma manifestação física a algo que, claramente, não existe.
Seth Hall - Jurassic Park fez isso comigo. Quando assisti a esse filme quando criança, saí do cinema com a sensação de que os dinossauros eram reais.
Fausto de Martini - Acho que existem trabalhos no cinema que, mesmo não sendo novos, são perfeitos em criar essa sensação. Pra mim, Alien ainda é um filme perfeito.
E.T., de Spielberg, é algo que, na minha opinião, não poderia ser mais real...
Neville Page - Exato. E aquilo é cinema, é uma boa história acima de tudo. Acho que o problema agora é que chegamos a um ponto em que os efeitos visuais se tornaram um componente tão importante para atrair público que, bem... Hoje conseguimos fazer Avatar, mexer com partículas, fenômenos naturais e os designers são mais capazes do que nunca de criar imagens plausíveis. O que precisamos agora é de...
Fausto de Martini - Alma.
Neville Page - Pois é, precisamos chorar como chorávamos com E.T. ou Laços de Ternura. Há vários filmes hoje você assiste e que têm um design maravilhoso, efeitos sensacionais e milhões de dólares que foram gastos para que ele pareça bonito, mas você simplesmente não tá nem aí. Existem filmes com o melhor artista gráfico do mundo, e todas as imagens são as melhores que elas poderiam ser, mas o público não está nem aí.
Fausto de Martini - Acho que a discussão toda é que é preciso voltar a se preocupar com a alma, a história por trás da imagem.
Neville Page - Não pode apenas ser bonito, tem que ser inteligente.
Este ano, pela primeira vez, o Oscar escolheu cinco produções, em lugar de três, para serem indicadas na categoria de Efeitos Especiais. Isso significa algum tipo de reconhecimento do trabalho de vocês?
Neville Page - Acho que a maioria de nós que trabalha em Hollywood sabemos que essas premiações são políticas. Claro que eu serei o primeiro a ir lá receber um prêmio, não diria nada para desencorajar isso. No entanto, quando vejo algumas indicações, penso comigo mesmo: 'não se pode colocar esses filmes numa mesma categoria'. Não acho que as premiações reconheçam os artistas. Exemplo: Guerra ao Terror ganhou de Avatar em Melhor Direção. Eu veementemente discordo disso. E falo isso de um ponto de vista bem objetivo, do que significa dirigir um filme e o esforço por trás dele. Para um artista desse meio de CG, o mais importante é ter reconhecimento entre nós mesmos, é saber que seu trabalho está sendo admirado por outro profissional de ponta.
Quais as primeiras memórias visuais que você tiveram e que até hoje ecoam na vida de vocês como profissionais do ramo?
Seth Hall - Cartuns, desenhos, certamente ecoam até hoje. Mas muito cedo me interessei por fotografia e isso me ajudou bastante a trabalhar com o que trabalho agora.
Neville Page - Minha primeira lembrança é do Livro de Arte de Walter T. Foster. Quando eu tinha 7 anos, vi esse livro e ele tinha uma garota nua na capa. Confesso que, naquela época, minha piração não era com a garota nua, era a massinha que vinha com o livro. E aí meus pais me deixaram comprar essa "pornografia". Lembro que fiquei tão animado em esculpir com massa... E aí esculpi esses peitos e fiz os mamilos... Pensei na época: será que posso fazer esse tipo de coisa. Mas meus pais me encorajaram e foi fantástico porque eles tiraram da equação todo o fato sexual e permitiram que essa criança fosse um artista.
Fausto de Martini - Pra mim foi Star Wars o primeiro grande impacto visual. Lembro disso porque, depois de assistir ao filme, fiquei fascinado pela mecânica da Estrela da Morte e comecei a desenhar e recriar a superfície dela. Sempre gostei muito de desenhar.
Finalmente, no que vocês estão trabalhando hoje?
Neville Page - Estou agora com Alien, a "prequência" que eles não chamam mais de "prequência", com Ridley Scott, e começando a trabalhar na sequência de Star Trek, com JJ Abrams. Na verdade, eu nem deveria estar aqui. JJ me falou: 'cara, é uma semana de trabalho', de forma que eu começo a ficar nervoso.
Star Trek 2 já está em produção?
Neville Page - Não oficialmente. Mas creio que a Paramount queira começar essa produção o mais rápido possível.
Mas o filme já tem sinal verde?
Neville Page - Não posso assegurar isso, mas sei que eu tenho sinal verde.
E quanto a Prometheus, o novo filme do Alien?
Neville Page - Preciso ter cuidado ao falar disso, porque ele está mudando de tom à medida que o tempo passa. Mas eu estou quase terminando.
Com personagens, criaturas...?
Neville Page - Quase terminando o trabalho no filme, não posso falar mais do que isso. É uma das coisas que você precisa aprender nessa indústria, é não romper com o contrato de sigilo.
Seth Hall - Bem, eu acabei de trabalhar em...desculpa, não posso dizer.
Fausto de Martini - Eu também não posso falar nada... desculpa.